
No âmago da sua demência, achava sempre uma forma de se voltar a encontrar. Era hábito perder-se nas personagens que deambulavam pelos livros que enfeitavam a estante da sala, pejados de pó que teimava em não limpar. Lembrava-lhe as caves do vinho, repletas de garrafas, empoeiradas, envelhecidas, valoradas pelo passar do tempo. Desde pequena acompanhava-a a solidão que lhe consumia as entranhas num  rasgar do coração, nas lágrimas secas que não conseguia chorar. A  consanguinidade não lhe dizia respeito há mais anos que os que conseguia  contar, tinha deixado de importar. O apartamento, impecável e  obsessivamente arrumado constituía o seu último reduto, o seu refúgio, o  habitat onde depositava as suas manifestações de individualismo. Pelo  menos o que ainda lhe restava. No 3.º direito da Rua da Alegria (quanta ironia pensava ao sair de casa),  encerrava o seu ser dia após dia, noite após noite. Era bibliotecária.  Nos seus livros, nas suas leituras era a personagem principal. Solvia o  seu querer nas palavras  escritas por outrém. Passeava amiúde pela multidão em busca do que não  tinha. Via-se nos sorrisos dos outros, encarnava nos olhares ternos  dirigidos àqueles que observava. Imaginava-se em cenários extrínsecos,  idolatrava a felicidade que transparecia dos seus pares. De si nada  surgia. De seu nada tinha. À noite apertavam-se-lhe as veias num nó  gélido e indelével num sono só. Cobria o corpo com o manto aconchegante  da dormência. A mesma que a fazia flutuar pela vida numa existência  incapacitante. À noite sonhava os sonhos líricos das páginas que curava  de dia. Preferia os romances e espreitava de quando em vez, a medo, envergonhada, a secção erótica. Um corredor esguio e inerte, longe de olhares indesejáveis, secreto como os livros de magia e esoterismo. Era ali que vivia (como que recordando) as páginas de um amor tórrido, de um desejo incandescente, de uma paixão avassaladora. Embrenhava-se de tal forma nas linhas que compunham aqueles textos que  perdia amiúde a noção do tempo e do lugar. O instinto e a vontade de sentir na pele o prazer que só havia conhecido em palavras, levavam-na vezes sem conta a procurar-se. Entregava-se ao prazer de se descobrir, de se conhecer intimamente. Imaginava sem pudor o seu amante. Tenaz, vigoroso, insaciável, virtuoso, capaz de ser gentil e bruto em simultâneo, atencioso. Uma mão segurava o livro, a outra desenvencilhava-se da roupa e encontrava o seu centro nevrálgico de prazer. Tocava-se desesperadamente, silenciando os gemidos que calava da plateia de estudiosos que ali se encontravam, sucumbia perante o orgasmo ténue mas perfeito por não conhecer maior perfeição. Votava-se ao sucesso de, por alguns instantes que fossem, sentir vida brotar do seu corpo, sentir-se mulher.  
Da janela do seu quarto, observou a noite enquanto fumava um cigarro  prosaico e descansado. Estava só e dava tudo por uma noite mal dormida.  Almejava a entrega verdadeira de dois quereres numa vontade só.  Debruçou-se mais de perto sobre o parapeito. Viu o corropio das luzes  incessantes que se sucediam na rua. Decidiu ver mais de perto.  Hipnotizada, entregou-se às vertigens. Viu-o. Vestia de negro  resplandecente. Decidiu querê-lo.


 
 
 
 
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